POEMAS SOCIAIS --- I

                

                  VERSOS CATÁRTICOS

 

                                            

 

 

Farejo o aborto de ideias:

Pensamentos que anseiam

Alcançar o estado de palavra;

Acabam tendo a garganta-vácua

Por cova, arquete, mortalha,

A sua única câmara mortuária!

 

 

Farejo vales de sangue

Inundando as esquinas da vida:

Ecoa pelo espaço

O agônico bramido de fera ferida

Em virtude de mais uma morte

Por bala perdida.

 

 

Farejo a cidadania

Vivendo á base de morfina e hemodiálise:

Cidadão de primeira classe

É fazer com que toda a nação

Consuma o oxigênio da mente

E das auspiciosas oportunidades á vontade.

 

 

Farejo a mão do arco-íris

Pousar sobre o meu ombro:

Apesar da fogueira de vilanias,

Preconceitos, impotências e hipocrisias,

A esperança bate-me no peito

De afro-latinoamericano ainda!

 

 

 

JESSÉ BARBOSA DE OLIVEIRA

 

 

 

 

 

         REINO SUBTERRÂNEO

 

 

Meus olhos enxergam,

No âmago do macrocosmo urbano,

Retas metálicas e flocos de opulenta luz fulgurando.

 

 

No âmago do macrocosmo urbano,

Meus olhos contemplam

Sóis cerebrais sob capacetes e mãos em luva

Erigirem vivendas, trilhos, fibra ótica, aluminióticos dutos;

Megastores, metrôs, trens-bala, bélicos hotéis de luxo:

Uma verdadeira réplica subjacente

Do superno mundo vivente

Que continuamente se transmuda.

 

 

Contemplo o árduo laborar glorioso destes artífices anônimos

Do viés recôndito da face da vida citadina:

Vejo gente alegre, quacre, tímida, tristonha;

Vejo gente egrégia, cansada, íntegra, risonha;

Vejo gente amarga, acre, doce, incauta e lancinante opala oceânica

                                       [de incessantes lembranças;

Vejo gente que traz consigo imensuráveis caminhos doídos de errância;

Vejo gente montada no dorso auspicioso d’aurora;

Vejo gente que segue o fluxo do córrego da estrada

                            Longa, sádica, morosa;

Vejo gente se desvanecer para sempre como mais uma presa

Nas garras do renque do empedernido inverno da selva de cimento;

Vejo migalhas de caviar na boca dos moribundos da mental seca,

Amaldiçoados por serem inconscientes de sua iminente falência;

Vejo, afinal, gente. Gente em sua mais sublime e ordinária essência.

Gente fazedora da arcana alameda majestosa:

Onde a couraça da contraluz esconde

O estadão, a florescência arbórea da esmeralda, a tão almejada prata!

Ah, meus queridos vitalícios detentos  da antropocêntrica faina,

A vocês, tristemente, minha voz profere sua baldia fala:

Pobre gente. Pobre gente, filha da atroz auréola da desgraça!

 

 

 

 

Ah, o que sei.

Sei que lá embaixo há todo um universo...

Lá embaixo há toda uma nação de chagas abertas, inflamadas...

Lá embaixo há relíquias, realejos e trovas telúricas na memória...

Lá embaixo há Favelas, Roças, Minas, Bahias, Pernambucos, Cearás

   [Paraíbas, Amapás, Brasílias, Curitibas, Corumbás, Linhares,

                        Itabunas, Restingas...

Lá embaixo o sonho de repisar o chão de sua Terra

Move uma infinita legião de operários eremitas...

Lá embaixo a bruma é lume que sempre pereniza...

Lá embaixo o ocaso prematuro é comensal insone,

                      Um recalcitrante conviva...

Lá embaixo aflora uma aura em espiral

Que, enleando almas amigas do fugaz retiro,

Quebranta as monumentais geleiras do hermetismo

E edifica a ponte irmanatória da generosa troca de dolentes vivências.

Finalmente, lá embaixo,

Os oprimidos sofrem uma metamorfose formidável:

Eles viram Cézanne, Portinari, Matisse, Oscar, Drummond, Michelangelo;

Monet, Rembrant, Frida, Dali, Cabral, Gullar, Otávio, Van Gogh,  Picasso,

Pois com seus pincéis calejados pintam o novo capítulo

Da civilização contemporânea.

Sim, Jorges, Juvenais, Damascenos, Marcos, Antônios, Firminos,

Ricardos fazem vicejar a imponência das novas

Esconsas urbes humanas.

                  

JESSÉ BARBOSA DE OLIVEIRA

 

                    HEMORRAGIA DA ESPERANÇA

                 (INSPIRADO PELO FILME O BAIXIO DAS BESTAS)

 

 

Mulher-coisa

Mulher á venda

Mulher-nada

Mulher com a sua dignidade sangrada

Mulher-carne

Mulher que anda sempre ao largo do direito á privacidade

Mulher alugada á alheia sofreguidão selvagem

Mulher-propriedade

Mulher-objeto

Mulher-sexo

Mulher sujeitada á tirania da demanda

Mulher expulsa do reino da álacre infância

Mulher que ostenta

No âmago do seu corpo

Melancolia, padecimento e o dolente desgosto

Mulher cativa

Mulher-menina

Menina-presa

Menina confinada no cárcere da violência

Menina que encerra

No seu taciturno pranto

Uma vida vazia de sonhos

Menina errante, errática:

Sem horizontes a seguir

Sobre a ponte da sua dura jornada

Menina que tem por horizonte

O sol de uma sina malograda

Menina que tem como guia, ventura e carma

O vitalício caminhar sobre o vácuo da estrada

Feminina, Menina, Mulher, Maná

Manhã, Alvo da Chaga, Comida da Sáfara!

 

JESSÉ BARBOSA DE OLIVEIRA