CRÔNICA SOBRE O DESERTO DIÁRIO Eclodem --- em cada esquina de periferia E ao anoitecer do dia --- Toques de recolher Que põem hiatos No cotidiano querer De almas humildes: renitentes ermidas! Na plenitude do sol a pino, Cilindros de fogo Que esgarçam o horizonte --- ao serem deflagrados --- Operam uma metamorfose: Transformam os arco-íris de vida Em miríades da execrável necrópole! Orgias de alucinógenos cooptam, Com o seu orvalho, Sentinelas e abocanham, Usando suas peçonhentas mandíbulas, Numerosas presas: As engrenagens da violência Cobrem de ouro e fragrâncias de opulência A realeza da mais valia facínora, horrenda vivenda! JESSÉ BARBOSA DE OLIVEIRA
COMEDORES DE SOBRAS
No penúltimo halo da antemanhã,
Pessoas saem de seu humilde viveiro
Para buscar o combustível do corpo
Em um quase longínquo desterro.
E, ao chegar a seu destino,
A feira,
Esperam pacientemente
O ocaso da efervescência
Da harmonia desarmônica
Dos sóis de quem vende e de quem compra.
Então, quando advém a hora ansiada,
Afluem sôfregas ao encontro do tapete
De frutas, legumes e verduras
Que cobre o chão
Onde, sob os afagos rudes do dia-a-dia,
Rodas, sapatos, pés desnudos ou de sandálias
Apressada e inescrupulosamente pisam.
Ah, e como a fome delas
É canina e ao mesmo tempo conformista:
Um ancião desempregado
Amaina o vácuo em sua barriga
Com uma suculenta manga dormida.
Ah, quando alguém se depara
Com a horrenda fronte da fome
------ Sentada no trono de sua opulência ferina ------
Deslinda que o nojo é luxo;
Não uma alameda a ser seguida.
Algumas, ao regressar a seu ninho,
Comutam refugo em lucro:
O que na feira era lixo;
Na carente vila de casebres
É auspicioso fruto rentável, celeste, divino.
No entanto, para a hoste de grisalhas
Barbas engravatadas e garbosas,
Este paraíso da lídima e visceral miséria
É nada mais que um moribundo resquício
De seu passado sem rosas e azaleias.
Não, mas estas pessoas:
Estas pessoas sabem
Que a miséria cintila até o ponto
Em que assoma a dor nas vistas;
Que ela é viva, concreta, fenece, fere,
Queima e alucina.
E ela o faz de inúmeras maneiras:
Maneiras que a mais poderosa verve
Nunca sequer imagina.
Sim, todavia alheias aos mais atrozes sofismas,
Elas prosseguem crentes na vida:
Sempre a segurar a ponta do rabo
Daquilo que crêem ser a esperança,
Apesar do crepúsculo, das mazelas,
Das chagas em abundância,
Da dor, da amargura e da desabonança!
Enfim, elas prosseguem,
Mesmo com o mar infinito de desamor,
De inclemência, da ausência de ternura
E do culto da sentimental distância.
Sim, estas belas pessoas continuam a hastear,
Embora não saibam,
O estandarte do vislumbre de uma vindoura era magnânima.
JESSÉ BARBOSA DE OLIVEIRA
CRIANÇA-DESESPERANÇA Sinais de trânsito Consagram-se como a mansão do desespero: Retina que projeta o pletórico curso Dos oceanos desmesurados Tal um caudaloso riacho Áspero, egoísta, velhaco, avarento! A nascente de um homem revoltado do amanhã Aproxima-se dum carro, Momentaneamente parado, E pede uma esmola, um trocado A um varão, quase ás portas da terceira idade, O qual lhe responde negativamente Como quem toma posse Do semântico corpo duma troça, Proferida por um palhaço insosso, idiota! Ah, com efeito, Quando regressar á sua moderna senzala, Será recebido pelo lancinante e sádico abraço, Dado pela frustrada materna senhora Ou por seu irascível patriarca, Forjados, quem sabe também, Por um incessante ciclo Da alijante navalha opressora da miséria: Sempre a portar o vírus da avidez não contentada, a edace fera! Ah, pobre menino medrado, Que se tresmalha da vida. Indivíduo púbere e opaco Que não recebe o sol da honrosa alegria. Jovem homem confinado num mundo Onde o poder da voragem É a sua única verdade e sina. JESSÉ BARBOSA DE OLIVEIRA